terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O dia em que a cólera não chegou

Em 1999, eu estava no auge de minha meninice. Tinha 10 anos e estava na quarta série, período em que somos todos os reis do pátio da escola por sermos mais velhos do que o pessoal das outras turmas.
Morava em Antonina, uma pequena cidade no litoral do Paraná que vivia (e ainda vive) uma relação de dependência com Paranaguá. É uma cidade tranquila em que o grande acontecimento é a filha de Fulano estar grávida. Por isso – pela calmaria, não a gravidez indesejada – é que se tornou costume entre os moradores evocar os tempos de ouro da cidade, em que o porto funcionava e o município tinha alguma relevância.
Aos meus 10 anos, vi seus últimos suspiros. Lembro que eu atravessava a rua correndo entre um caminhão e outro ou tampava os ouvidos quando o trem passava. Todos em direção ao velho porto.
Foi nessa época que ela chegou. A cólera. Escondida nos navios que vinham do exterior, ela desembarcou em Paranaguá sem que ninguém percebesse. Manteve-se no anonimato até sua grande estreia: a morte de um holandês.
A notícia espalhou-se mais rápido do que a doença e Paranaguá foi tomada pelo pânico. As primeiras a se desesperarem foram as putas, sempre muito chegadas do dinheiro holandês. Até se descobrir quem fora o gringo morto pela moléstia, houve choro e desespero em todas as zonas perto do porto.
Como já havia dito, Antonina sempre foi muito dependente de Paranaguá. Tanto que até mesmo o surto de cólera foi compartilhado, por mais que nenhum caso tivesse sido relatado. Era um clima de tensão aonde quer que você fosse. Até mesmo os peixes passaram a ser amaldiçoados, já que diziam que toda a merda dos navios era jogada no mar. Foi a sentença de morte para muitos restaurantes da cidade.
A cidade logo desenvolveu um sentimento segregacionista. Primeiro os caminhoneiros, que foram transformados em ratos que traziam a Peste Negra para dentro dos limites da cidade. Depois foram os estivadores que passaram a ser evitados e vistos como comissários do próprio Anjo da Morte.
Como a cidade era pequena, não demorou muito para que os boatos de que “o irmão de Beltrana” foi pego pela cólera. A desconfiança tomou conta e, como o principal sintoma da doença era a diarreia, qualquer cagadinha a mais era sinônimo de exclusão social.
Eu estudava na maior escola pública da cidade e que abrigava mais da metade das crianças. Moleques ignorantes cuja maioria dos pais trabalhava no porto, seja de Antonina ou Paranaguá. E como aos 10 anos ninguém sabia muita coisa além de que terça era dia de Nescau na cantina, algumas medidas extremas foram tomadas.
A primeira ação foi proibir o empréstimo de qualquer material ao colega. Logo depois veio o cancelamento de qualquer atividade fora de sala, como brincar no pátio ou aulas de recreação. Como a aula de Educação Física ainda não tinha sido inventada, as professoras inventavam um dia de recreação, que sempre coincidia com os dias em que elas não queriam trabalhar.
Tente chegar para quase 50 crianças de dez anos e dizer que elas não podem mais brincar lá fora. Houve reclamação, gritos, bagunça e os alunos que faziam a 4ª série pela quinta vez ameaçavam matar a professora. Para contornar a situação – e continuar vadiando – as tias desenvolveram um sistema de jogos dentro de sala. Grupos divididos fazendo atividades diferentes. Foi nesta ocasião que desacreditei no ensino público, quando uma professora tentava me convencer, aos berros, de que a Alemanha ficava na Ásia.
Porém, o maior problema para os diretores da escola era encontrar uma forma de conscientizar aqueles pequenos demoninhos sobre o real perigo da cólera. A solução encontrada foi exibir uma série de vídeos educativos. E nenhum deles era exibido nas dependências da instituição. Era a saída perfeita para “dar aula” sem correr o risco de morrer.
Lembro-me de ir com um pequeno grupo na casa de uma veterinária para assistir a tal filme. Era incrivelmente chato, mas impactante. Até hoje me lembro do “TAM TAM TAM TAM” dramático dos primeiros acordes da 5º Sinfonia de Beethoven que iniciam o vídeo. Em seguida imagens de uma folha de alface, que recebia um zoom até mostrar a figura do demônio daquele fim de milênio: o vibrião colérico.
E por alguns tempo a figura da vírgula assassina assombrou nossas vidas. Todos os dias surgiam histórias de que alguém fora internado, vítima da cólera. Crescia também o número de pessoas que morriam, mas eram facilmente encontradas na praça central, conversando e comendo amendoim. Meu pai foi morto três vezes pela cólera em duas semanas.
A situação começava a deixar as pessoas paranóicas. Não duvido de que alguém tenha passado sangue de bezerro sobre a porta para impedir a entrada da doença. Simpatias foram criadas, as preces e orações sempre pediam pela vida de um suposto enfermo ou para evitar que o maldita alcance algum conhecido. Porém, por maior que fosse a fé da pessoa, poucos arriscavam uma ida à igreja. Apesar de não ser transmissível pelo ar, qualquer possibilidade de contato pessoal dava margens para uma possível contaminação.
Mas bastou que passassem dois meses e ninguém mais se lembrava do desespero de outrora e percebeu-se que a cólera nunca havia chegado a Antonina. Nenhuma caso foi realmente confirmado e as enfermeiras, que sempre traziam notícias de falta de leitos por causa da cólera, descobriram que ninguém nunca foi internado por causa da doença em Antonina.
Logo as putas voltaram a atender os holandeses com a mesma atenção de antes, a desconfiança sumiu, os caminhoneiros foram perdoados e você podia cagar em paz sem que te olhassem como doente. O pânico foi embora, mas voltou dez anos depois na forma do quilo de presunto.

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